quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Multidão de amores

Eles não estavam trocando juras de amor, não andavam de mãos dadas, nem se chamavam por nomes infantis. Não tinha pieguice romântica ali. Mas foi a cena mais doce que eu vi: dois olhares se encontrando. Não só se encontrando: se confortando, se sabendo, se completando. Eu notei que eles eram algo além de amigos, que se desejavam e se protegiam, e foi só pela cumplicidade dos olhos, que deixavam de ser dois e se enlaçavam quatro.

Eu quis então ter um olhar pra mim. Não alguém pra chamar de meu, como diz o clichê, como grita a conveniência, mas um olhar que fosse meu por puro encaixe. Foi um pouco de inveja, talvez. Eu soube naquelas duas pessoas que elas não se sentiam sozinhas ou perdidas. Que mesmo depois de um dia cheio e chato, tinham uma certeza de carinho. E eu quis. Quis algo além da rotina do trabalho e gente fabricada com seus narizes perfeitos e cabelos penteados. Quis algo certo como o frio na barriga e a respiração travada, o coração esquecendo de bater. Quis algo errado que me fizesse bem só por escapar do caminho óbvio de toda noite. Uma espera no fim do dia, sabe? Essa espera. Não a espera de uma vida toda sem saber o que buscar pra ser feliz. Só sair do dia igual pra ter uma noite diferente. E tornar esse diferente comum só porque é bom estar perto.
Todo o amor que eu sufoquei por excesso de razão agora grita, escapa, transborda. Estou só numa multidão de amores, assim como Dylan Thomas, assim como Maysa, assim como milhões de pessoas; assim como a multidão de amores está só, em si. Demonstro minha fragilidade, meu desamparo. Eu não procuro alguém pra pentencer e ter posse, só quero uma fonte segura de amor que não dependa das obrigações, das falas decoradas, dos scripts prontos. Eu sei que eu abri mão de várias oportunidades. Sei que fiz pouco caso do amor que me entregaram de maneira pura e gratuita, só porque eu achava que podia encontrar coisa melhor. Se as pessoas estão sempre indo e vindo, eu só queria alguém minimamente eterno em sua duração, que me fizesse parar de achar normal essa história de perder as pessoas pela vida.

Vou embora querendo alguém que me diga pra ficar. Estou sempre de partida, malas feitas, portas trancadas, chave em punho. No fundo eu quero dizer "Me impede de ir. Fica parado na minha frente e fala que eu tenho lugar por aqui, que não preciso abandonar tudo cada vez que a solidão me derruba. Me ajuda a levar a vida menos a sério, porque é só vida, afinal." E acabo calada, porque não faz sentido dizer tudo isso sem ter pra quem.

Eu não quero viver como se sobrevivesse a cada dia que passo sozinha. Não quero andar como se procurasse meu complemento em cada olhar vago. Eu acho que mereço mais que isso por tudo o que eu sei que posso fazer por alguém. E fico só esperando, na surpresa do dia que eu desencanar de esperar, um par de olhos que me faça ficar sem nenhuma palavra, nada além de dois olhos se enlaçando quatro. Nessa multidão de amores, sozinho é aquele que não espera.

- Veronica H.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Então eu rezo. Sai de mim. Sai de mim. Sai de mim. Quero uma coisa nova, mas pra me suar as mãos e enfraquecer as canelas, você ainda é o que há de mais inovador. E é isso que me mata aos poucos: juntos, a gente dança disforme à música. um pra lá, um pra cá, e seu corpo me chama pra dançar. Vou, não nego. Mas na manhã seguinte, quando segue o baile, estou sem par outra vez.

Gabito Nunes

terça-feira, 29 de junho de 2010

Chega de reticências.
Ficar esperando.
Sofrendo.
Contando saudades.
Se o amor não é possível, o melhor é colocar um fim. E ponto.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Você não sabe, menino, mas eu machuco as pessoas. Eu faço com que elas se apaixonem por mim como um desafio, como uma criança testando seus limites. Então enjoo do meu jogo e não dou explicações. Destruo corações que se abrem pra mim com tanto esforço, na esperança de terem encontrado alguém legal.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Sinceramente eu não sei o que pode ser feito. Sei que a muito tempo, algo emaranhado dentro de mim foi desfeito, por despeito seu. Livrou-me tão perfeitamente de um amor que começou torto e continuou crescendo assim, fim. Mas e aí? Preciso de garantias, precisava disso. Eu tenho, e pretendo continuar com elas, como um amuleto ou quem dirá uma bússola. E elas dizem para eu ficar aqui, exatamente aqui. Então meus olhos, meu corpo, minha cabeça pedem cama, descanso da distância.
Olha, eu não alcanço aonde vão meus sonhos. Quisera eu aprender a estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ah, mas talvez se eu tivesse uma escada, escolheria a escala da sua cidade e escalaria seu coração. Sabe que eu odeio ter as mãos atadas para te provar as coisas enfeitadas que vivo dizendo? Isso quando justamente estou sendo tão eu. Mesmo sem esperanças - ou assustadoramente cheia delas - continuo esperando.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Sem Ana, Blues

Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de não continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela.

Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos dourados e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, pergunrando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.

Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o momento-depois, e no momento-quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência da Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão e o suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das letras no bilhete de Ana - depois que Ana me deixou, como ia dizendo, dei para beber, como é de praxe.

De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vodca, lágrima e café, foi mesmo o gosto de vômito na minha boca. Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente de Ana, guardava prudente no bolso os óculos redondos de armação vermelhinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase toda a vodca, junto com uns restos de sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo de Ana. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência - e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.

Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito - nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vômito, misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas, que costumava perdir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades, como volta-para-mim-Ana ou eu-não-consigo-viver-sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou.

Mandei para a lavanderia os lençóis verde-clarinhos que ainda guardavam o cheiro de Ana - e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tivesse a voz rouca eu a selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas vulgares , bem diversas das que Ana dizia ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-querido, passando dos dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda pelas minhas costas. Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Débora, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karina, Cristina, Marcia, Nadir, Aline e mais de 15 Marias, e uma por uma das garotas ousadas da Rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaia de couro, e destas moças que anunciam especialidades nos jornais. (...)me jogava de bruços na cama e pedia perdão à Ana por traí-la assim, com aquelas vagabundas. Trair Ana, que me abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.

Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés. Ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, dos sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas à Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas e velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mister Wonderful, musculação, alongamento, yoga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarajá ou Monte Verde e de repente quem sabe Carla, mulher de Vicente, tão compreensiva e madura, inesperadamente, Mariana, irmã de Vicente, transponível e natural em seu fio dental metálico, por que não, afinal, o próprio Vicente, tão solícito na maneira como colocava pedras de gelo no meu escocês ou batia outra generosa carreira sobre a pedra de ágata, encostando levemente sua musculosa coxa queimada de sol e o windsurf na minha musculosa coxa também queimada de sol e windsurf. Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi se tornando ao poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.
Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego do trabalho por volta das oito horas da noite e, no horário de verão, pela janela da sala do apartamento ainda é possível ver restos de dourados e vermelhos por trás dos edifícios de Pinheiros, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. A gravata levemente afrouxada no pescoço, fazia e faz tanto calor que sinto o suor escorrer pelo corpo todo, descer pelo peito, pelos braços, até chegar aos pulsos e escorregar pela palma das mãos que seguram o último bilhete de Ana, dissolvendo a tinta das letras com que ela compôs palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, arrevogáveis. Que Ana me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-la, e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.

Caio Fernando Abreu